quinta-feira, 7 de abril de 2011

CRÔNICA

Em mãos a carteira de músico

O despertador nem precisou tocar, já fazia cerca de vinte minutos que eu acordara. Ansiedade não faz bem pra cabeça e nem pro estômago, eu sei, mas aquela seria uma data importante para mim, pelo menos foi esse o meu primeiro pensamento do dia.

Mal consegui engolir o café, que me desceu pela garganta como uma pasta, impregnada na língua e nos lábios. Em um pulo tirei os pijamas, vesti as calças e a melhor blusa do meu modesto armário. Os sapatos estavam lustrados. Eu precisava estar bem apresentável, vai saber se aparência não contaria no resultado final.

Fui de ônibus até o local, a ansiedade era tamanha que sequer liguei para os quase cinquenta minutos dentro do coletivo. Ao chegar, identifiquei-me para a secretária. Ali estava eu, para o exame prático para a retirada da minha carteira de músico, ou no meu caso, carteira de musicista. Até então tudo parecia tranquilo, o órgão era fiscalizado pela Ordem dos Músicos do Brasil, que me remetia a uma certa seriedade, apesar de já ter ouvido declarações públicas de músicos em relação à Ordem, chamando aquilo de um livre comércio. Eu não entendia, pelo menos até então.
Numa educação equivalente a uma porta, o homem velho de cabelos grisalhos até os ombros, grita, enquanto enrola seus cachos com as pontas dos dedos:
  • Próximo!
Quanta singeleza, era a mim que ele chamava. Vou em direção a ele, entro na sala. A porta se fecha. Ele coçava a barba branca e cerrada. Eu bem que tentei interagir com o senhor, mas ele nem respondeu ao meu “bom dia”. Parecia que educação não era um princípio dali. Ele me leva a uma sala caindo aos pedaços, que ele gentilmente chamou de “estúdio”. Quem era eu para questionar se aquilo mais parecia um sobradinho que um estúdio. Ligou o amplificador, com muito custo, devido ao mal contato do fio da tomada. Eu esperava no mínimo um amplificador de guitarra, pois era este o instrumento pelo qual eu tentaria tirar a carteira. Ilusão minha. O amplificador era daqueles de ligar som, estilo propaganda na rua feita por promotor de vendas. Bem, lá vou eu, ligar a guitarra meia boca, no amplificador até sem boca, de tão ruim. O senhor apenas me acompanhava com os olhos, sem dizer nada. Eu afino a guitarra, brinco um pouquinho com a famosa “Smoke On The Water”, do Deep Purple, que todos os guitarristas utilizam para aquecer os dedos e os ouvidos. E pergunto:
  • O que devo fazer agora?
  • Olha, aqui a gente só quer saber se a pessoa conhece o instrumento. Pelo pouco que tocou, já vi que sabe. Pode ir embora já. Semana que vem você vem buscar sua carteira, pode pegar com a secretária mesmo.
Eu cocei a cabeça. Como assim? Foram menos de dez segundos e ele já quer me dar a carteira? E ainda diz que é um procedimento padrão. Tá explicado agora porque os músicos reclamam tanto da instituição. Ok, você venceu, senhor dos cabelos grisalhos. Me retirei da sala. Antes de partir, deixo os duzentos reais do exame (que foi me cobrado assim que cheguei ao local) e a secretária me alerta dos cento e dez da anuidade. Pra que isso tudo? Para que um pedaço de papel e nada mais que isso comprove que sou musicista. Qualquer criança de três anos, brincando, literalmente, com um instrumento faria o mesmo (ou talvez até melhor) do que eu fiz ali.

No trajeto de volta, pensei muito sobre isso. Eu fiz o exame para retirada da carteira porque legalmente é a única coisa que comprova que sou musicista. Mas depois dessa experiência um tanto quanto superficial percebi que todos somos músicos em potencial, desde que paguemos a taxa de duzentos reais antes do exame e estejamos em dia com a anuidade da ordem.

O pior de tudo aconteceu durante a retirada da carteira: a secretária disse não ter encontrado meus registros, disse que eu não havia feito o exame. Apenas depois de muita insistência minha ela foi procurá-la. Me entregou, com a face enfurecida. Eu só pensava que se alguém ali deveria ficar nervoso, esse alguém era eu e não ela. Fui eu quem pagou os duzentos reais por dez segundos de exame e depois teve os registros perdidos.

Isso não é maravilhoso? Uma Ordem em plena desordem.

Por Marina de Morais

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